A Casa da Cerca está uma moça crescida e no seu aniversário oferece-nos uma viagem ao passado, à sua primeira exposição em 1993. Amadeo Souza-Cardozo veio do século passado para não faltar à festa, e pelo caminho a moça de 25 anos convida ainda Ana Jotta, Jorge Queiroz e Matilde Campilho. A exposição é O Futuro do Passado.
Os artistas convidados trabalham em volta do trabalho de Gustave Flaubert, famoso romancista francês que escreveu o grande romance de Madame Bovary. Na Casa da Cerca, são as lendas dos Trois Contes que nos vão enriquecer a veia artística. A Amadeo e à poetisa Matilde calhou a Lenda de São Julião Hospitaleiro, já Ana Jotta ilustra Um Coração Simples e Jorge Queiroz representa a Dança da Morte.
Estes são os três contos publicados por Flaubert em 1877, este considerado não só um dos percursores do modernismo, mas também deixando a sua marca como um dos mais importantes autores da literatura francesa.
Matilde Campilho
Ao subir a escada somos acompanhados pelo poema de Matilde Campilho, é ela a artista contemporânea que em conjunto com Amadeo vai dar vida à lenda de São Julião. Matilde é inspirada pela vida animal da lenda e cria poemas para aqueles que morreram durante a jornada do santo. Como podemos ler na folha de sala: “Campilho escreve sobre a violência de cada uma destas mortes, conferindo-lhes uma dignidade de personagem principal e assim, esticando o tempo e o universo do conto.”
Amadeo Souza-Cardozo
Foi em 1912 que Amadeo foi inspirado pelo autor, a Lenda de São Julião Hospitaleiro é interpretada num livro de artista que podemos encontrar logo ao início da exposição, mas não podemos mexer, e com razão. Então, a equipa da moça aniversariante fez a segunda melhor coisa, encolhe-nos a nós para cabermos dentro do livro de Amadeo.
Quando subimos a escada para o primeiro andar mergulhamos numa imensidão azul, onde as páginas crescem e nós passamos a ser como que um bicho perdido nas folhas do livro – e na mente de Amadeo.
A envolvência é inegável, o livro abre-se para o podermos explorar quase como um mundo à parte do real, entramos assim no livro de artista que Amadeo Souza-Cardozo criou para a Lenda de São Julião Hospitaleiro:
“O pai e a mãe de Julião moravam num castelo, no meio dos bosques, na encosta de uma colina. As quatro torres, aos cantos, tinham telhados pontiagudos cobertos de escamas de chumbo e a base das muralhas assentava nos rochedos que desciam a pique até ao fundo dos fossos. As pedras do pátio estavam tão limpas como as lajes de uma igreja. Longas gárgulas em forma de dragões de focinho inclinado cuspiam a água das chuvas para a cisterna; e no peitoril das janelas, em todos os andares, num vaso de barro pintado, crescia um manjericão ou um girassol(…)”
Da lenda de São Julião, Amadeo tirou e ilustrou a caça, o cavalo e seu cavaleiro, lobos, florestas, viagens, armas de guerra, emblemas e brasões e o profundo horror do incesto. As ilustrações passaram para os tempos de hoje como a expressão inseparável dos textos de Flaubert. Hoje em dia caminham lado a lado, passaram a ser duas figuras intimamente ligadas pela sua arte.
Jorge Queiroz
Na sala seguinte temos a representação do diálogo entre Satanás e a Morte que discutem os dramas da eternidade. Jorge Queiroz ficou encarregue da Dança da Morte. É a partir daqui que nasce o que à primeira e distraída (e cómica) vista num veículo de bruxas no meio da sala. O tom da sala é amarelo, quente, para contrastar com a sala escura azul de onde acabamos de sair, pendurado na sala está um porta menu metálico (bem giro por sinal) embrulhado numa sobreposição de materiais, técnicas, frases do conto e abstrações. A escultura foi batizada com a primeira frase do conto “Muitas palavras para poucas coisas!”.
Ana Jotta
Na última sala já temos alguma luz e um pouco de um tímido cor-de-rosa. Os desenhos de Ana Jotta estão pendurados no lado direito, à primeira vista não são propriamente impressionantes, principalmente depois de assistirmos às representações de Amadeo, mas à medida que nos aproximamos começam a surgir pequenas surpresas. Um Coração Simples é a história sobre bondade e dedicação centrada numa criada que se entrega totalmente à sua patroa. Ana Jotta dá-nos a sua visão num conjunto de páginas riscadas, pintadas e repintadas, quase parece uma tentativa de apagar algo – talvez a ingenuidade da criada -, e nos cantos das folhas, quase impercetível de longe, surgem os desenhos, as ilustrações surgem nas sombras, nos cantos, só para os olhos mais atentos.
Há sempre algo romântico no mundo da arte quando se junta e faz colaborar grandes artistas do passado com as técnicas e mentes de artistas do presente. Esta é uma oportunidade de rever e deixar-nos levar pela nostalgia da magnifica mão artística de Amadeo Souza-Cardozo e ao mesmo tempo assistirmos à evolução dos tempos, das interpretações, das vozes e visões artísticas do nosso tempo. O importante continua a ser a capacidade de ver para lá do palpável e apreciar a profundidade de coração e a nova perspetiva que temos o privilégio de fazer parte.
O Futuro do Passado está em exposição na Casa da Cerca, em Almada, até dia 3 de março de 2019.